Diante da injustiça, a covardia se veste de silêncio (Julio Ortega) - frase do blog http://www.findelmaltratoanimal.blogspot.com/

sábado, 5 de junho de 2010

A “NATUREZA” HUMANA E O DIA MUNDIAL DO MEIO AMBIENTE

UMA PAIXÃO NO DESERTO - Honoré de Balzac

“Que espetáculo pavoroso!”, exclamou ela ao sair do zoológico do sr. Martin. Acabava de contemplar aquele ousado pesquisador trabalhando com sua hiena, para falar em estilo de anuncio.

“Por que meios” continuou, “ele pode ter domado seus animais a ponto de estar bastante seguro de que sentem afeto por…”

“Esse fato, que lhe parece um problema”, respondi interrompendo, “é no entanto uma coisa natural…”

“Oh!”, ela exclamou, deixando vagar por seus lábios de incredulidade.

“Quer dizer que a senhora acredita que as feras são inteiramente desprovidas de paixões?”, indaguei. “Saiba que podemos dar-lhes todos os vícios devidos ao nosso estado de civilização.”

Ela me olhou com ar atônito.

“Mas”, retornei, “ao ver pela primeira vez o senhor Martin, confesso que me escapou, como à senhora, uma exclamação de surpresa. Encontrava-me na ocasião próximo de um velho militar cuja perna direita fora amputada e que entrara comigo. Essa figura chamara minha atenção. Era um desses rostos intrépidos, marchados pelo sinete da guerra e sobre os quais estão escritas as batalhas de Napoleão. Aquele velho soldado tinha sobretudo um ar de franqueza e de alegria que me provoca sempre uma predisposição favorável. Era sem duvida um desses soldados a quem nada surpreende, que vêem graça na contorção final do rosto de um camarada, que o sepultam ou saqueiam satisfeitos, que interpelam as balas com autoridade, cujas debilerações, enfim, são curtas, e que confraternizariam com o diabo. Depois de ter contemplado com muita atenção o proprietário do zoológico no momento em que saía da jaula, meu companheiro enrugou os lábios de forma a demonstrar um desdém zombeteiro por intermédio daquele tipo de muxoxo significativo que se permitem os homens superiores para fazer-se distinguir dos tolos. Assim, quando manifestei minha admiração pela coragem do sr. Martin, ele sorriu e me disse com jeito competente balançando a cabeça: ‘Grande coisa!…’

“‘Como, grande coisa!’, respondi. ‘Se o senhor quiser explicar-me tal mistério, lhe serei muito grato.’”

“Após alguns instantes durante os quais travamos conhecimento, fomos jantar no primeiro restaurante cuja fachada se ofereceu a nossos olhos. À sobremesa, uma garrafa de vinho da Champanha devolveu às memórias daquele curioso soldado toda a sua clareza. Ele me contou sua história, e vi que tinha razão em exclamar: — Grande coisa!”

De volta à casa dela, ela usou de tantos artifícios, fez tantas promessas, que consenti em redigir-lhe a confidencia do soldado. No dia seguinte, portanto, ela recebeu este episodio de um epopéia que poderíamos intitular: Os franceses no Egito.


***


Quando da expedição empreendida no Alto-Egito pelo gal. Desaix, um soldado provençal, tendo caído prisioneiro dos magrebinos, foi levado por aqueles árabes para os desertos situados alem das cataratas do Nilo. A fim de pôr entre eles e o exército francês um espaço suficiente para sua tranqüilidade, os magrebinos fizeram uma marcha forçada e não pararam antes de caída a noite. Montaram acampamento em torno de um poço ocultado por palmeiras, junto às quais haviam anteriormente enterrado algumas provisões. Sem supor que a idéia de fugir pudesse ocorrer a seu prisioneiro, eles se contentaram com amarrar-lhe as mãos e adormeceram todos depois de comer algumas tâmaras e dar cevada a seus cavalos. Quando o ousado provençal viu seus inimigos fora de condições de vigiá-lo, serviu-se de seus dentes para apossar-se de uma cimitarra e, usando os joelhos para fixar a lâmina, cortou as cordas que lhe impediam o uso das mãos e libertou-se. Prontamente se apropriou de uma carabina e de um punhal, abasteceu-se com uma provisão de tâmaras secas, um pequeno saco de cevada, pólvora e balas; cingiu uma cimitarra, montou sobre um cavalo e esporeou vivamente na direção em que supunha estar o exército francês. Impaciente por rever um brivaque, tanto apressou o corcel já cansado que o pobre animal expirou, com os flancos dilacerados, deixando o francês no meio do deserto.

Depois de caminhar na areia por algum tempo com toda a coragem de um presidiário fugitivo, o soldado foi obrigado a parar, o dia terminava. Apesar da beleza do céu durante as noites no Oriente, não se sentia com forças para continuar seu caminho. Felizmente conseguira galgar uma protuberância no topo da qual se erguiam algumas palmeiras, cujas folhagens avistadas muito antes haviam despertado em seu coração as mais doces esperanças. Sua exaustão era tão grande que ele se deitou sobre uma laje de granito, talhada com capricho em forma de cama de campanha, e ali adormeceu sem tomar nenhuma precaução para sua defesa durante o sono. Ele dera sua vida em sacrifício. Seu ultimo pensamento chegou a ser um remorso. Já se arrependia de ter deixado os magrebinos, cuja vida errante começava a sorrir-lhe, desde que se vira longe deles e sem socorro. Foi acordado pelo sol, cujos raios impiedosos, caindo em cheio sobre o granito, produziam ali um calor intolerável. Ora, o provençal fizera a tolice de posicionar-se no sentido inverso da sombra projetada pelas cabeças verdejantes e majestosas das palmeiras… Olhou para aquelas árvores solitárias e sentiu um calafrio! Elas lhe lembravam as hastes elegantes e coroadas de longas folhas que caracterizam as colunas sarracenas da catedral de Arles. Mas quando, depois de contar as palmeiras, ele correu os olhos em torno de si, o mais terrível desespero fundiu-se sobre sua alma. Viu um oceano sem limites. As areias escuras do deserto se estendiam a perder de vista em todas as direções, e brilhavam como uma lâmina de aço atingida por uma luz viva. Ele não sabia se era um mar de gelos ou se eram lagos unidos como um espelho. Carregado por vagas, um vapor de fogo girava em turbilhões sobre aquela terra movediça. O céu tinha um brilho oriental de um pureza desesperante, porque nada resta a desejar, assim, à imaginação. O céu e a terra ardiam em fogo. O silêncio assustava por sua majestade selvagem e terrível. O infinito, a imensidão oprimiam a alma por todos os lados: não havia uma nuvem no céu, um sopro no ar, um acidente no seio da areia agitada por ondinhas sutis; enfim o horizonte chegava ao fim de um sabre. O provençal abraçou o tronco de uma das palmeiras como se fosse o corpo de um amigo; depois, ao abrigo da sombra delgada e direita que a árvore desenhava sobre o granito, ele chorou, sentou-se e ali ficou, contemplando com uma tristeza profunda a cena implacável que se oferecia a seus olhares. Gritou como para tentar a solidão. Sua voz, perdida nas cavidades da protuberância, entregava à distância um som débil que não despertou nenhum eco; o eco estava em seu coração: o provençal tinha vinte e dois anos, armou sua carabina.

“Estará sempre em tempo!”, disse para si mesmo pousando por terra a arma libertadora.

Contemplando ora o espaço escuro ora o espaço azul, o soldado sonhava com a França. Sentia deliciado os riachos de Paris, lembrava-se das cidades por que passara, dos rostos de seus camaradas e das mais ligeiras circunstâncias de sua vida. Enfim, sua imaginação meridional depressa o fez entrever os seixos de sua querida Provença nos balanços do calor que ondulava acima da manta estendida no deserto. Temendo todos os perigos daquela cruel miragem, ele desceu vertente oposta àquela pela qual subira, na véspera, a colina. Sua alegria foi grande ao descobrir uma espécie de gruta, naturalmente talhada nos imensos fragmentos de granito que formavam a base do montículo. Os restos de uma esteira anunciavam que aquele asilo fora alguma vez habitado. Ademais, a alguns passos avistou palmeiras carregadas de tâmaras. Então o instinto que nos prende à vida despertou em seu coração. Ele esperou viver o suficiente para aguardar a passagem de um grupo de magrebinos, ou, quem sabe!, ouviria em breve o barulho dos canhões; pois, naquele momento, Bonaparte percorria o Egito. Reanimado por esse pensamento, o francês abateu alguns cachos de frutos maduros sob o peso dos quais as tamareiras pareciam vergar-se, e teve a certeza, ao provar daquele maná inesperado, de que o habitante da gruta havia cultivado as palmeiras. Com efeito, a polpa saborosa e fresca da tâmara acusava os cuidados de seu antecessor. O provençal passou subitamente de um desespero sombrio a uma alegria quase louca. Voltou a subir ao cimo da colina e passou o resto do dia ocupado em cortar uma das palmeiras infecundas que, na véspera, lhe haviam servido de teto. Uma vaga lembrança fê-lo pensar nos animais do deserto; e, prevendo que poderiam vir beber naquela fonte perdida nas areias que surgia ao pé do quartel de rocha, resolveu garantir-se contra suas visitas pondo uma barreira à entrada de seu refugio. Apesar de seu ardor, apesar das forças que lhe dava o medo de ser devorado durante o sono, foi-lhe impossível cortar a palmeira em vários pedaços no mesmo dia; mas conseguiu abatê-la. Quando, à noitinha, aquela rainha do deserto caiu, o ruído de sua queda ressoou ao longe, e foi como um gemido solto pela solidão; o soldado estremeceu como se tivesse ouvido alguma voz a prever-lhe uma desgraça. Mas, como um herdeiro que não lamenta por muito tempo a morte de um progenitor, ele desnudou a bela árvore das grandes e altas folhas verdes que são seu adorno poético e as usou para consertar a esteira sobre a qual se deitaria. Fatigado pelo calor e pelo trabalho, adormeceu sob os lambris vermelhos de sua gruta úmida. No meio da noite seu sono foi perturbado por um ruído extraordinário. Sentou-se, e o silêncio profundo que reinava lhe permitiu reconhecer o tom alternativo de uma respiração cuja energia selvagem não podia pertencer a uma criatura humana. Um medo profundo, ademais acrescido pela obscuridade, pelo silencio e pelas fantasias do despertar, gelou-lhe o coração. Ele mal sentia a dolorosa contração de seu couro cabeludo quando, à força de dilatar as pupilas de seus olhos, avistou na escuridão dois brilhos fracos e amarelos. A principio atribuiu aquelas luzes a um reflexo qualquer de sua retina; mas logo, a claridade viva da noite ajudando pouco a pouco a distinguir os objetos que se encontravam na gruta, ele avistou uma enorme animal deitado a dois passos de si. Seria um leão, um tigre ou um crocodilo? O provençal não tinha instrução suficiente para saber em que subgênero estava classificado seu inimigo; mas seu terror foi tanto mais violento quanto sua ignorância o fez supor todas as desgraças juntas. Suportou o cruel suplício de escutar, de perceber os caprichos daquela respiração, sem nada deixar escapar e sem ousar permitir-se qualquer movimento. Um odor tão forte quanto aquele exalado pelas raposas, contudo mais penetrante, mais grave, de certa forma, enchia a gruta; e depois que o provençal o degustou com o nariz, seu terror chegou ao cúmulo, pois ele não mais podia relegar à dúvida a existência do terrível companheiro cujo antro real lhe servia de tenda. Logo os reflexos da lua que se precipitava em direção ao horizonte, iluminando o covil, fizeram sutilmente resplandecer a pele malhada de uma pantera. Aquele leão do Egito dormia, enrodilhado como um enorme cão, tranqüilo proprietário de um nicho suntuoso à entrada de uma mansão; seus olhos, abertos por um momento, tinham-se fechado. Tinha o rosto voltado para o francês. Mil pensamentos confusos passaram pela alma do prisioneiro da pantera; a principio queria matá-la com um tiro de fuzil; mas percebeu que não havia espaço suficiente entre ela e ela para mirar, o cano passaria do animal. E se o acordasse? Esta hipótese o deixou imóvel. Ouvindo seu coração bater em meio ao silêncio, maldizia as pulsações demasiado fortes que a afluência do sangue ali produzia, temendo perturbar aquele sono que lhe permitia buscar um recurso salutar. Por duas vezes pôs a mão sobre a cimitarra na intenção de decepar a cabeça do inimigo; mas a dificuldade de cortar um pêlo curto e duro o obrigou a renunciar a seu ousado projeto. — Errar a mira? seria morrer com certeza, pensou. Preferiu os riscos de um combate, e decidiu esperar pelo dia. E o dia não se fez aguardar por muito tempo. O francês pode então examinar a pantera; seu focinho estava tingido de sangue. “Ela comeu bem!…”, pensou ele, sem se preocupar em saber se o festim fora composto de carne humana, “não terá fome ao despertar.”

Era uma fêmea. A pelagem do ventre e das coxas brilhava de alvura. Várias manchinhas, semelhante a veludo, formavam belas pulseiras ao redor das patas. A cauda musculosa era igualmente branca, mas terminada por anéis negros. A parte de cima do pêlo, amarela como ouro fosco, mas bem lisa e suave, tinha aquelas pintinhas características, com nuances em forma de rosas, que servem para distinguir as panteras das outras espécies de felis. Aquela anfitriã tranqüila e temível roncava numa pose tão graciosa quanto a de uma gata deitada sobre a almofada de um divã. Suas patas ensangüentadas, nervosas e bem armadas, estavam à frente da cabeça que repousava por cima, e da qual partiam barbas raras e direitas, semelhantes a fios de prata. Se ela estivesse assim dentro de uma jaula, o provençal teria sem dúvida admirado a graça do animal e os vigorosos contrastes das cores vivas que davam à sua samarra um brilho imperial; mas naquele momento ele sentia sua vista perturbada por esse aspecto sinistro. A presença da pantera, mesmo adormecida, fazia-o experimentar o efeito que os olhos magnéticos da serpente produzem, dizem, sobre o rouxinol. A coragem do soldado acabou por se desvanecer por um momento diante daquele perigo, ao passo que sem dúvida ele teria se exaltado diante da boca dos canhões a vomitar metralha. No entanto, um pensamento intrépido aflorou em sua alma e secou, na fonte, o suor frio que lhe escorria do rosto. Agindo como os homens que, levados ao limite pela desventura, chegam a desafiar a morte e se oferecem a seus golpes, ele viu sem dar-se conta uma tragédia naquela aventura, e resolveu desempenhar seu papel com honra até a última cena.

“Antes de ontem, talvez os árabes tivessem me matado…” — refletiu. Considerando-se morto, esperou, corajoso e com inquieta curiosidade, pelo despertar do inimigo. Quando o sol surgiu, a pantera abriu subitamente os olhos; em seguida estendeu violentamente as patas, como para desentorpecê-las e dissipar as dores. Enfim bocejou, mostrando a assustadora aparelhagem de seus dentes e a língua sulcada, dura como uma lima. “Ela parece uma pequena amante!…”, pensou o francês ao vê-la rolar e fazer os movimentos a assustadora aparelhagem de seus dentes e a língua sulcada, dura como uma lima. “Ela parece uma pequena amante!…”. pensou o francês ao vê-la rolar e fazer os movimentos mais suaves e faceiros. Ela lambeu o sangue que tingia suas patas e seu focinho e coçou a cabeça com gestos reiterados cheios de delicadeza. “Muito bem! Faça uma pequena toalete!…”, disse para si mesmo o francês que reencontrava a alegria ao recobrar a coragem. “Vamos desejar-nos um bom dia.” E agarrou o punhalzinho curto que tomara dos magrebinos.

Nesse momento, a pantera voltou a cabeça para o francês e o fitou fixamente, sem avançar. A rigidez daqueles olhos metálicos e sua insuportável claridade fizeram o provençal estremecer, sobretudo quando a fera caminhou em sua direção; mas ele a contemplou com ar carinhoso, de soslaio, como para magnetizá-la, deixou que chegasse perto; depois, com um movimento também suave, amoroso como se quisesse acariciar a mais bela mulher, passou-lhe a mão sobre todo o corpo, da cabeça à cauda, atiçando com suas unhas as vértebras flexíveis que dividiam o dorso amarelo da pantera. A fera ergueu a cauda com volúpia, seus olhos se suavizaram; e quando, pela terceira vez, o francês levou a cabo aquele agrado interesseiro, ela fez ouvir um desses ronrom com os quais nossos gatos exprimem seu prazer; mas aquele murmúrio partia de uma goela tão possante e tão profunda que ressoou na gruta como os últimos roncos dos órgãos em uma igreja. O provençal, ciente da impotência de suas carícias, redobrou-se de forma a atordoar, entorpecer aquela cortesã imperiosa. Quando sentiu-se certo de ter extinguido a ferocidade da caprichosa companheira, cuja fome fora tão felizmente saciada na véspera, ele se ergueu e quis sair da gruta; a pantera permitiu que partisse, mas mal ele vencera a colina e ela saltou com a leveza dos pardais que pulam de um galho a outro e veio esfregar-se contra as pernas do soldado, dando-lhe as costas como fazer as gatas. Então, fitando o hóspede com olhos cujo brilho se tornara menos inflexível, ela soltou aquele grito selvagem que os naturalistas comparam ao ruído de uma serra.

“Ela é exigente!”, exclamou o francês, sorrindo. Experimentou brincar com as orelhas, acariciar-lhe a barriga e coçar com força a cabeça com as unhas. E, ao perceber seu sucesso, fez-lhe cócegas no crânio com a ponta do punhal, espreitando a hora de matá-la; mas a dureza dos ossos fê-lo estremecer de medo de não conseguir.

A sultana do deserto aprovou os talentos do escravo erguendo a cabeça, esticando o pescoço, denunciando sua embriaguez pela tranqüilidade de sua atitude. O francês pensou de repente que, para assassinar de um só golpe aquela feroz princesa, seria preciso uma punhalada na garganta, e ele já erguia a lâmina quando a pantera, satisfeita sem dúvida, deitou-se graciosamente a seus pés lançando de quando em quando olhares em que, apesar de um rigor nativo, transparecia confusamente certo desvelo. O pobre provençal comeu suas tâmaras apoiado em uma das palmeiras; mas uma e outra vez lançava um olhar perscrutador sobre o deserto em busca de libertadores, e sobre sua terrível companheiros para vigiar-lhe a clemência incerta. A pantera olhava o local onde os caroços de tâmara caíam toda vez que ele jogava um, e nesse momento seus olhos exprimiam uma incrível desconfiança. Ela examinava o francês com prudência comercial; mas esse exame lhe foi favorável, pois assim que ele terminou sua magra refeição ela lambeu seus sapatos e, com uma língua áspera e forte, miraculosamente lhes retirou a poeira incrustada nas dobras.

“Mas e quando ela sentir fome?…”, pensou o provençal. Apesar do arrepio que a idéia lhe causou, o soldado se pôs a medir curiosamente as proporções da pantera, certamente um dos mais belos indivíduos da espécie, pois tinha três pés de altura e quatro de comprimento, sem incluir a cauda. Aquela arma possante, roliça como um bastão, tinha quase três pés. A cabeça, grande como a de uma leoa, distinguia-se por uma rara expressão de elegância; a fria crueldade dos tigres dominava ali, mas havia também uma vaga semelhança com a fisionomia de uma mulher dissimulada. Enfim, a imagem daquela rainha solitária revelava naquele momento um forma de alegria semelhante à de Nero embriagado; ela se saciava no sangue e queria brincar. O soldado tentou ir e vir, a pantera o deixou livre, contentando-se em segui-lo com os olhos, assim lembrando menos um cão fiel do que um gordo angorá apreensivo com tudo, mesmo com os movimentos de seu mestre. Quando ele se voltou, avistou ao lado da fonte os restos de seu cavalo, a pantera arrastara o cadáver até ali. Cerca de dois terços estavam devorados. O espetáculo tranqüilizou o francês. Ficou fácil explicar a ausência da pantera e o respeito que ela tivera para com ele durante seu sono. Essa primeira felicidade lhe deu a audácia de considerar o futuro e ele concebeu a louca esperança de permanecer em termos amigáveis com a pantera durante o dia inteiro, sem desprezar nenhum meio de domá-la e de conciliar suas boas graças. Retornou para junto dela e teve a felicidade inefável de vê-la agitar a cauda com um movimento quase imperceptível. Sentou-se então sem medo a seu lado e começaram os dois a brincar, ele agarrou as patas, o focinho, torceu-lhe as orelhas e coçou com força seus flancos quentes e sedosos. Ela permitiu, e quando o soldado tentou alisar-lhe o pêlo das patas, recolheu cuidadosamente as unhas recurvadas como lâminas de damasco. O francês, que mantinha uma mão sobre o punhal, ainda pretendia mergulhá-lo no ventre da confiantíssima pantera; mas temia ser imediatamente estrangulado na última convulsão que a agitaria. E, além disso, ouviu em seu coração uma espécie de remorso que lhe gritava que respeitasse uma criatura inofensiva. Parecia-lhe ter encontrado uma amiga naquele deserto sem limites. Pensou sem querer na primeira amante, a quem apelidara Doçura por antífrase, porque ela era de um ciúme tão atroz que durante todo o tempo que durou sua paixão teve de temer a faca com a qual ela sempre o ameaçara. Essa lembrança de sua juventude lhe deu a idéia de tentar fazer com que a jovem pantera, na qual ele admirava, agora com menos receio, a agilidade, a graça e a languidez, respondesse a esse nome.

Perto do final do dia ele já estava familiarizado com a situação perigosa e quase estimava suas angústias. Enfim sua companheira acabara por adquirir o hábito de olhá-lo sempre que ele gritava em voz de falsete: “Doçura”. Ao pôr do sol, Doçura produziu repetidas vezes um grito profundo e melancólico.

“Ela é bem educada!…”, pensou o alegre soldado; faz suas orações!… Mas essa brincadeira mental só lhe ocorreu depois de notar a atitude pacífica em que permanecia sua camarada. “Vai, minha loirinha, eu permitirei que te deites antes”, disse-lhe, contando com a atividade de suas pernas para escapar o mais depressa possível quando ela adormecesse, a fim de sair em busca de outro abrigo durante a noite. O soldado esperou com impaciência a hora da fuga, e, quando ela chegou, caminhou vigorosamente na direção do Nilo; mas mal completara um quarto de légua nas areias quando ouviu a pantera aos saltos atrás dele, lançando a intervalos aquele grito de serra, mais assustador que o ruído pesado de seus saltos.

“Ora vamos!”, pensou, “ela tomou amizade por mim!… Essa jovem pantera talvez não tenha ainda encontrado alguém, é lisonjeador ter seu primeiro amor!” Nesse momento o francês caiu numa daquelas areias movediças tão temíveis para os viajantes e de onde é impossível salvar-se. Sentindo-se preço, soltou um grito de socorro; a pantera o agarrou com os dentes pela gola; e, saltando com vigor para trás, tirou-o do abismo como por magia. “Ah! Doçura”, exclamou o soldado, acariciando-se com entusiasmo, “agora estamos juntos pela vida e pela morte. Mas sem tramóias?” E voltou sobre seus passos.

A partir daquele momento o deserto ficou como que povoado. Ele continha um ser ao qual o francês podia falar, e cuja ferocidade se amainara para ele, sem que ele entendesse as razões daquela inacreditável amizade. Por mais que o soldado desejasse ficar de pé e em guarda, adormeceu. Ao despertar, não viu Doçura; subiu ao alto da colina e, na distância, avistou-se correndo aos saltos, como é costume desses animais, para os quais a corrida é proibida pela extrema flexibilidade de sua coluna vertebral. Doçura voltou com os beiços sanguinolentos, recebeu as carícias necessárias que lhe fez seu companheiro, chegando a manifestar com vários ronroms graves sua satisfação. Seus olhos cheios de langor se dirigiram ainda com mais suavidade do que na véspera para o provençal, que lhe falava como a um animal doméstico.

“Ah! ah!, senhorita, pois é uma menina de bem, não é? Vê isso?… Gostamos de um carinho. Não tem vergonha? Comeu algum magrebino? Bem! São no entanto animais como a senhorita!… Mas não vá abocanhar os franceses, pelo menos… Eu não a amaria mais!…”

Ela brincou como um cãozinho com seu mestre, deixando-se ora rolar, ora bater, ora elogiar; e por vezes provocava o soldado estendendo a pata para ele, num gesto de pedinte.

Alguns dias se passaram assim. Aquela companhia permitiu ao provençal admirar as sublimes belezas do deserto. Desde que encontrava ali horas de temor e de tranqüilidade, alimentos e uma criatura em que pensar, tinha a alma agitada por contrastes… Era uma vida cheia de oposições. A solidão lhe revelou todos os seus segredos, envolveu-o com seus feitiços. Ele descobriu ao nascer e ao pôr do sol espetáculos desconhecidos do mundo. Soube arrepiar-se ao ouvir acima da sua cabeça o suave assobio das asas de um passarinho — raro passageiro! —, ao ver as nuvens se confundirem — viajantes mutáveis e coloridas! Estudou durante a noite os efeitos da lua sobre o oceano das areias onde o simum produzia vagas, ondulações e rápidas mudanças. Viveu ao sabor dos dias do Oriente, admirou suas pompas maravilhosas; e com freqüência, depois de ter gozado do terrível espetáculo de um furacão naquela planície onde as areias suspensas produziam névoas vermelhas e secas, nuvens mortais, via com deleite chegar a noite, pois então caía o benévolo frescor das estrelas. Ouvia músicas imaginárias nos céus. A solidão o ensinou a desfiar os tesouros do devaneio. Passava horas inteiras a lembrar-se de ninharias, a comparar sua vida passada à vida presente. Enfim se apaixonou por uma pantera; pois bem carecia de uma afeição. Fosse que sua vontade, fortemente projetada, tivesse modificado o caráter de sua companheira, fosse que ela encontrasse alimento abundante graças aos combates que se davam então nesses desertos, ela respeitou a vida do francês, que terminou por não mais duvidar dela ao vê-la tão bem amansada. Ele passava a maior parte do tempo a dormir; mas era obrigado a velar, como uma aranha no interior de sua teia, para não deixar escapar o momento de sua salvação, caso alguém passasse na esfera descrita pelo horizonte. Sacrificara sua camisa para dela fazer uma bandeira, hasteada no alto de uma palmeira desprovida de folhagem. Aconselhado pela necessidade, soube encontrar a forma de mantê-la estendida com o auxílio de gravetos, pois o vento poderia não agitá-la no momento em que o viajante esperado olhasse deserto afora…

Era durante as longas horas em que a esperança o abandonava que ele se divertia com a pantera. Acabara por conhecer as diferentes inflexões de sua voz, a expressão de seus olhares, estudara os caprichos de todas as pintas que matizavam o ouro de sua capa. Doçura já nem mesmo rugia quando ele tomava o tufo que arrematava sua ameaçadora cauda, para contar-lhe os anéis negros e brancos, ornamento gracioso, que brilhava de longe ao sol como pedrarias. Ele tinha prazer em contemplar as linhas macias e finas dos contornos, a brancura do ventre, a graça da cabeça. Mas era sobretudo em suas estripulias que ele a contemplava carinhosamente, e a agilidade, a juventude de seus movimentos, o surpreendiam sempre; ele admirava sua leveza quando ela se punha a saltar, a arrastar-se, a deslizar, a enfiar-se, a agarrar-se, rolar-se, encolher-se, lançar-se para todos os lados. Por mais rápido que fosse seu impulso, por mais escorregadio que fosse um bloco de granito, ela estacava imediatamente ao ouvir a palavra “Doçura…”.

Um dia, sob um sol esplendoroso, um imenso pássaro planou nos ares. O provençal deixou sua pantera para examinar aquele novo conviva; mas, depois de um momento de espera, a sultana abandonada rugiu surdamente. “Eu acho, por Deus, que ela está enciumada”, exclamou ele ao ver seus olhos outra vez rígidos. “A alma de Virginie terá passado para esse corpo, é certo!…” A águia desapareceu nos ares enquanto o soldado admirava as ancas arredondadas da pantera. Mas havia tanta graça e juventude em seus contornos! Era bonita como uma mulher. A pelagem loira de sua capa se unia por tonalidades finas aos tons do branco fosso que distinguia as coxas. A luz profusamente lançada pelo sol fazia brilhar aquele ouro vivo, aquelas manchas castanhas, de forma a dar-lhes atrativos indefiníveis. O provençal e a pantera se olharam com ar inteligente, a coquete estremeceu quando sentiu as unhas do amigo coçar-lhe o crânio, seus olhos brilharam como dois relâmpagos, depois ela os fechou com força.

“Ela tem uma alma…”, disse ele ao estudar a tranqüilidade daquela rainha das areias, dourada como elas, branca como elas, solitária e ardente como elas…


“Está bem”, me disse ela, “li sua apologia das feras; mas como terminaram duas pessoas tão bem-feitas para compreender-se?…”

“Ah! pois bem!… Terminaram como terminam todas as grandes paixões: por um mal-entendido. Acreditamos um e outro em alguma traição, não nos explicamos por orgulho, brigamos por teimosia.”

“E por vezes nos mais belos momentos”, disse ela; “um olhar, uma exclamação bastam. E então, termine sua história!”

“É terrivelmente difícil, mas a senhora compreenderá o que já me havia confiado o velho soldado quando, ao terminar sua garrafa de vinho da Champanha, exclamou: ‘Não sei que mal lhe fiz, mas ela se virou como se estivesse enraivecida; e, com seus dentes pontiagudos me talhou na coxa, de leve, é verdade. Eu, acreditando que ela queria devorar-me, enfiei meu punhal em seu pescoço. Ela rolou soltando um grito que me gelou o coração, vi-a debater-se olhando para mim sem raiva. Eu daria tudo no mundo, minha condecoração, que ainda não tinha, para devolvê-la à vida. Era como se eu tivesse assassinado uma pessoa de verdade. E os soldados que haviam visto minha bandeira e que acorreram em meu socorro encontraram-me desfeito em lágrimas… Pois é, senhor’, retornou após um momento de silêncio, ‘depois disso fiz as guerras da Alemanha, da Espanha, da Rússia, da França; passeei meu cadáver, não via nada semelhante ao deserto… Ah! aquilo sim é que é bonito.’ ‘O que o senhor sentia lá?…’, perguntei. ‘Oh!, isso é coisa que não se conta, rapaz. Aliás, não é sempre que sinto falta de meu buquê de palmeiras e de minha pantera… é preciso que eu fique triste para isso. No deserto, veja bem, há tudo, e não há nada…’ ‘Mas explique?’ ‘Pois é’, retornou ele, deixando escapar um gesto de impaciência, ‘é Deus sem os homens.’”

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