Diante da injustiça, a covardia se veste de silêncio (Julio Ortega) - frase do blog http://www.findelmaltratoanimal.blogspot.com/

sábado, 19 de abril de 2014

Ovis aries morta

Ilustração: Saverio Polloni
Por Dr. phil. Sônia T. Felipe, publicado no sítio Olhar Animal

Ou, carne de ovelha nessa e em outras semanas nada “santas”. Uma longa leitura para o seu feriado dar no que pensar sobre esse animal.

A novilha, condenada à morte por estar cega, é resgatada por um menino que a leva para casa e a adota. Solidário com o gesto do garoto, um carneiro do rebanho Ovis aries torna-se fiel escudeiro da novilha cega. Guia-a na pastagem, cuida para que ela não caia nos precipícios, dorme com ela.

Vivem assim por quase quatro anos, nos quais ela deu à luz um bezerro, de quem o carneiro cuidou como se fosse pai, protegendo-o de predadores. De seus próprios rebentos ele não precisa cuidar, porque o rebanho de ovelhas faz isso muito bem sem ele. Mas do bezerro as ovelhas não cuidavam, então, ele, sim, o fez! Quando a vaca morreu de infecção pulmonar, esse carneiro ficou ao lado do corpo morto gritando por horas, no mais puro desespero por não conseguir acordá-la nem ajudá-la.

Se um carneiro é capaz de gestos de fidelidade e de luto por uma criatura vulnerável de outra espécie, se é capaz de entender a limitação física dessa criatura e ampará-la para que sua integridade física seja preservada, como dizer que “ovelhas são estúpidas”, ou sem sensibilidade e consciência, pois não reagem à coisa alguma e seguem para a morte sem pestanejar?

Ovelhas seguem o caminho que os humanos ou suas guias indicam, não por serem destituídas de inteligência ou de raciocínio próprios, mas por serem constituídas de um sentimento muito forte, o da confiança. Jamais desconfiam que os humanos possam lhes fazer algo maldoso. Elas não têm maldade.

Ovelhas têm consciência de si, respondem e atendem pelo nome, e memória facial. Uma vez conhecida uma pessoa ou mesmo a face de outro animal, elas mantêm sua imagem na memória por muitos anos e a evocam quando voltam a encontrar-se.

Quando o bebê sai do útero, a primeira face que ele vê é a de sua mãe. No dia seguinte ele rejeita o contato de qualquer outra ovelha, mesmo que o contato seja gentil, mas não o de sua mãe.

Os olhos, nas ovelhas, são órgãos muito importantes. De longe elas ficam escrutinando a imagem de qualquer humano ou não-humano que se apresenta na área, para definir se é ou não um predador. Caso suspeitem dele, por terem memória de assaltos passados, sua tendência é de correr morro acima o bando inteiro, dificultando a perseguição do predador.

As ovelhas criadas para extração de lã, gordura, leite, chifres, carnes e tripas perderam muito do seu éthos específico, mas algo sempre se retém. A capacidade de reconhecer uma face, de predador ou não-predador a distância, segundo o estudioso de ovelhas Dr. Keith Kendrick, do Instituto Babraham de Cambridge na Inglaterra, evidencia consciência, sensibilidade e inteligência na espécie [Masson, 99-101].

A atenção e consciência das ovelhas tem forte componente visual. Elas assistem TV, concentradas, e etologistas interpretam isso como seu modo de observar as imagens para identificar a presença de algum predador na área. Ao focarem sua atenção nas imagens em movimento, “elas se asseguram de que nenhum predador as está observando”. [Masson, 101].

Mas como é possível que elas retenham a imagem de alguma face do próprio rebanho ou de humanos, ou de predadores com os quais tiveram contato há anos? Isso só é possível graças a uma atividade neural complexa e requer um cérebro complexo, esclarece Masson.

Os animais da espécie Ovis aries foram domesticados por volta do século oito antes da nossa era, no oeste da Ásia. Por sua doce natureza e por realizarem o imprinting da presença humana, os estudiosos acham que as mulheres foram responsáveis por essa domesticação, ao se aproximarem das ovelhas parturientes ou cuidarem dos bebês recém-nascidos quando as mães naturais morreram. Ao nascerem, os cordeirinhos viram o rosto da mulher e esse foi o rosto que eles gravaram para sempre.

Quando um animal faz tal imprinting, ele passa a considerar esse rosto o do seu guia e o segue para tudo quanto é lado. Isso está muito bem tratado no filme Voando para casa, no qual a menina foi tomada como mãe pelos patos recém-nascidos, na falta da mãe natural deles, morta sob a esteira de uma máquina de terraplanagem quando ainda chocava sua ninhada.

Ovelhas têm sido, desde há 2800 anos, usadas para tudo que é tipo de demanda humana: leite, carne, gordura, lã, pele, tripas etc. Sua inocência as tornou até mesmo matéria viva levada para dentro dos fornos de cal, em Buenos Aires, na época da colonização espanhola. Elas eram usadas como combustível que alimentava os fornos. Um decreto do Rei de Espanha pôs fim ao holocausto Ovis aries nas fábricas da cal [Masson, p. 111].

No sistema atual de criação manejada, os carneirinhos sofrem a castração sem anestesia, como ocorre com os porquinhos. Fêmeas e machos têm a cauda amputada também sem anestesia.

“Quem se importa?” Essa é a resposta de David Oldfield a Jeffrey Moussaieff Masson, o psicanalista que viaja mundo afora visitando todos os lugares onde são criados os animais usados para abate ou extração de leite e ovos, e santuários onde animais resgatados da morte são cuidados com a finalidade de viverem a vida que sua natureza lhes destinou, sem uso ou exploração para atender a demandas humanas.

Masson pesquisa a sensibilidade, a consciência, a linguagem e a capacidade de sofrer nos animais usados para consumo humano ao redor do mundo. Escreveu três livros (que li) tratando disso: When Elephants Weep (Quando os elefantes choram), The Pig Who Sang to the Moon (A porca que cantava para a lua) e The Face on Your Plate (O rosto no seu prato), do qual extraí as informações para fazer este artigo. Ele é autor de The Nine Emotional Lives of Cats, e Dogs Never Lie About Love (que ainda não li).

Duas vezes por ano, as ovelhas sofrem a tosquia. Apertadas entre as pernas do tosquiador, a navalha elétrica é passada para extração da lã. Velocidade é tudo nessa tarefa da tosquia. Um desses homens, entrevistado por Masson, tosquia 800 ovelhas em 9 horas de trabalho. Fiz as contas. Quase 90 ovelhas por hora, o que quer dizer que ele tem menos de um minuto, uns quarenta segundos, para finalizar a tosquia de cada animal. Dá para imaginar o tempo que ele tem para tratar com cuidado o corpo do animal ao pegá-lo, prendê-lo entre as pernas, passar-lhe a navalha elétrica, soltá-lo e já agarrar o seguinte.

Carinho e amor requerem dedicação e tempo. A pressa e a afobação não são favoráveis à ternura. Se o trabalho tem que ser feito com velocidade, o trabalhador não pensa que na outra ponta tem um ser senciente, sofrendo com o que é feito ao seu corpo e ao seu espírito rudemente: tosa, tosquia, privação. Masson conclui: “A docilidade com a qual a ovelha se deixa manipular e sua óbvia vulnerabilidade em vez de evocar compaixão por parte dos humanos, evoca desdém e desejo de exploração”. Isso é muito semelhante ao que ocorre nos relacionamentos humanos. Quanto mais dócil uma das partes, e mais fria e distante a outra, mais o desdém entra na cena, porque os dominantes menosprezam a docilidade nos dominados.

A tosquia é o roubo ou privação da camada de lã protetora que defende o corpo do animal do calor, do frio, do vento e da chuva. Imagine que a/o assaltem e arranquem sua roupa e sapatos no meio da rua num dia de inverno frio, chuvoso e ventoso e o deixem nu, nua! E imagine que não há roupa alguma que agora possa vestir para voltar a se aquecer. Isso é a tosquia.

Ela é feita uma vez no início da primavera e outra no início do inverno! No início da primavera o ar ainda está muito frio. No início do inverno o ar já está muito frio. E o tormento da imensa friagem é infligido às ovelhas, para quê? Para que humanos se aqueçam com a lã que a natureza deu ao corpo delas, não ao deles, que, hoje, têm dezenas de matérias sintéticas tão ou mais quentinhas e macias do que a lã Ovis aries para se agasalharem.

Se não sentimos remorso ou compaixão usando algo feito com lã de ovelhas, como esperar que um homem que cria e tosa as ovelhas para vender-nos sua lã o sinta? Se não sentimos nada pela morte do elefante do qual o marfim foi tirado e usamos pingentes ou qualquer outra coisa do marfim, como esperar que os caçadores de marfim o sintam? Se não sentimos nada ao tomar o leite tirado do corpo inflamado da vaca, como esperar que os ordenhadores com suas teteiras elétricas o sintam? Se não sentimos nada ao comer as carnes de animais que estavam vivos e foram mortos para atender nossa demanda, como esperar que os jovens matadores na câmara de sangria o façam, se têm menos de um minuto para esquartejar o corpo de um bovino, de um suíno, de uma ovelha, de uma ave?

Tosquiadores, ordenhadores e matadores são o reflexo de nós, não a fonte da maldade. Eles não são seres humanos do mal, enquanto nós, pobres e inocentes consumidores, somos do bem e só podemos parar de consumir produtos animalizados quando não houver mais o sistema de produção disso!

Nós produzimos o produto com nossa demanda. Não temos inocência. Nosso consumo gera esses humanos. O nosso consumo gera essas práticas institucionalizadas de destruição do corpo e da mente dos animais que consumimos.

Masson entrevistou um jovem dono de fazenda de ovelhas que lhe contou que uma vez uma delas aprendeu com ele como soltar a tranca da porta do curral e libertou suas colegas. Ovelhas são estúpidas? Isso é o que a mente ignorante humana pensa delas, não o que elas são. Essa ovelha foi morta a tiros, por ter demonstrado com sua inteligência o desejo de viver livre e ter libertado suas companheiras de infortúnio, ensinando-lhes como destravar a porta do curral.

No Oriente Médio, no leste da Europa e na Rússia, as ovelhas são criadas para extração do leite. Segundo Galactolatria: mau deleite [p. 18], são extraídas de ovelhas nove milhões de toneladas de leite por ano. Essa quantidade não passa de 1,3% do total de leite animal extraído anualmente no mundo. Mas quase dez bilhões de litros de leite tirados das pequenas ovelhas não é pouco sofrimento envolvido.

Delas são extraídos o leite e a lã, e quando o rebanho está de bom tamanho e a reposição garantida, elas são mortas para extração de carnes, gordura, tripas e peles felpudas. Segundo Masson, no Tibete e nas Montanhas do Himalaia as ovelhas são mortas para tudo isso, depois de terem sido usadas também para o transporte de cargas. Sua gordura é usada como combustível e as tripas como fio para costuras [p. 107]. Da lã extraem-se elementos usados no ocidente em shampoos e sabonetes: lanolina.

Na história da domesticação de ovelhas não está claro se foi usada primeiro para o leite ou para a carne. O uso da lã veio mais tarde, porque a lã da ovelha silvestre não tinha a textura atual [Masson, 108], que resultou de cruzamentos planejados pelo espírito predador humano.

A ovelha é uma espécie de animal cuja vida, do nascimento à morte, é levada a efeito num mesmo local. Ela vive ligada à área onde aprendeu a pastar e basta. Não há animal mais biorregional do que ela. Onde ela nasce, ali tem de tudo o que necessita para viver sua natureza Ovis aries. As árvores nascem fixadas ao solo. As ovelhas fixam-se (imprinting) ao solo onde nascem. Tirá-las do seu espaço, da sua casa ou oikos (do grego) e levá-las para outro ambiente é violência contra seu corpo e seu espírito. O pastor encontra cada uma de suas ovelhas, porque sabe exatamente onde cada uma delas mais gosta de pastar.

Sua confiança na figura do guia é imensa, a ponto de ser abusada até na hora de conduzir o rebanho para a esteira do abate. Eles põem um macho na frente, denominado não casualmente de “o carneiro Judas”. Todos o seguem serenamente para a rampa do caminhão, insuspeitando que ali espreita a morte. Mas para guiá-las no rebanho não é o macho o eleito e sim uma fêmea, a mais velha e franzina do grupo. Ela detém o conhecimento necessário para manter em vida o rebanho todo. Força e tamanho, para a espécie Ovis aries, não contam na hora de eleger a guia. Idade e desenvoltura, sim!

O manejo ao qual as ovelhas são condenadas as leva a sofrer muita dor. Doenças não conhecidas no estado não manejado hoje são comuns nos rebanhos: apodrecimento das patas, escaras na pele, ácaros que se infiltram sob a pele, ferimentos causados pela tosquia, com moscas pousando e deixando ali seus ovos, criando larvas. Vermes nos pulmões, lombrigas e outros parasitas intestinais são fonte de sofrimento para as ovelhas manejadas pelo homem, males introduzidos pela domesticação.

Entrevistando o Dr. John Webster sobre a dor em ovelhas, Masson obteve a resposta: a dor em ovinos, bovinos e humanos é similar e não diminui com o tempo, só piora, sem dó nem piedade.

Tamanha agonia infligida à vida das ovelhas não nos autoriza a pensar que sua docilidade resulta de sua natureza feliz. E é a carne desses animais torturados que será assada em churrascos pelo mundo afora para celebrar a morte de Jesus. Lembrei-me de uma das 30 crônicas do livro de Evely Libanori, Nós, animais, intitulada: “O sacrifício da manicure”. “Carne é carne, não?” Essa não dá para fazer o “sacrifício” de deixar de comer.

Sacrifício é o gesto de alguém oferecer-se, no lugar de outro mais frágil, para poupar a vida do mais frágil. A perversão humana distorceu tudo e nomeou sacrifício o ato de tirar a vida de um animal vulnerável para favorecer outro nada vulnerável diante do morto. É tempo de ressurgirmos dessa montanha de cadáveres que produzimos com nossa violência.


Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais(Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2006);Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012); Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal (www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@ (Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista, contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC, 1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta vegana.